terça-feira, 5 de agosto de 2008

"Morrer deve ser uma grande aventura"

"Perdemos muitas coisas ao longo da vida: amigos, dinheiro, amados e bugigangas. O tempo passa e percebemos que a dinâmica implacável das derrotas aumenta em ritmo e intensidade. Perdem-se os dentes, a memória, o ânimo e alguns sonhos. Perdem-se amores para sempre. Alguns se vão por esclerose. Outros seguem seus caminhos por conta dos erros de cálculo.

Vão-se os amigos, as amadas e as amarras. E nem o vento volta para nos empurrar mar adentro. Partem os vizinhos, os colegas de trabalho e os próprios empregos. Morre muita gente pelo caminho. Uns morrem de burrice. Outros morrem de velhice. Vários cederam às tentações e decepcionaram. Morreram também.

O sítio morre para garantir a poupança. A casa cede ao apartamento pelo desperdício de espaço. O carro falha, o sapato fura e o pijama fica. Pára o relógio mais querido, some o brinquedo que seria para sempre, fica para trás alguma coisa importante da qual agora eu já nem lembro.

O destino é infiel e decidido. Mesmo que eu acredite que nada está decidido. Fui criado para lutar e fazer o futuro que pudesse conquistar. Apesar disso, assisto espantado aos lances definitivos do acaso.

E nesse mundo de perdas, a pior de todas é a da sensação de invulnerabilidade. Depois de certa idade, morrem os pais, os tios, os padrinhos. Parece que combinam. Chega um momento e morrem todos aqueles que nos deram tudo o que somos (ou boa parte das perdas e dos ganhos).

Aos poucos percebemos que até os nossos heróis acabam sendo abatidos. E é difícil aceitar que não há mais quem nos proteja da vida. É quando, mesmo já adultos, marmanjos, perdemos de vez o que podia sobreviver da meninice protegida. Ou viramos nós mesmos os heróis de nossos filhos, sobrinhos e afilhados, ou perdemos todos e tudo, a começar pela esperança.

É triste perceber que nascemos dessas perdas. Renascemos, na verdade. Recomeçamos de onde estávamos para seguir além do possível. Até que o tempo, a burrice ou as decepções nos matem. E ganhemos o status de buracos nas vidas daqueles que nos amam (ou nos amaram).

Nos últimos tempos tenho perdido muita gente querida. E não gosto de acreditar no inevitável. Queria muito poder voltar a ser o cowboy de mentirinha que montava no cavalo-goiabeira do jardim. Arremessar mangas na cachoeira como se fossem granadas de uma guerra imaginária (e eu sempre vencia). E exercitar meus super poderes de brincadeira enquanto meus velhos heróis batalhavam de verdade para que eu pudesse brincar.

Mas até os meus heróis acabaram perdendo. E como se não soubesse que isso fosse acontecer, fico muito triste. Talvez não quisesse acreditar. Pois os próximos a perder serão meus filhos, sobrinhos e afilhados, que escolheram a mim, pobrezinhos, para ser o super herói que vai morrer um dia. E eu não quero que eles cresçam, porque vão perder o que venho perdendo nestes últimos tempos.

Mas nós, humanos, somos feitos daquilo que perdemos. E nada mais podemos fazer que não reconstruir em nós mesmos aqueles que nos fizeram vencer. Até para sabermos perdê-los. Até para saber que um dia também seremos perdidos."